Escrito por Ian Eduardo, Walber Pena e Glauco Marota.
Londres, 31 de outubro de 2016.
A porta do pub se abre e uma mistura de vento gelado e garoa o acerta em cheio, navalha e agulhas, ele reclama enquanto tenta recuperar o equilíbrio perdido pelo súbito confronto, certamente seria mais fácil se ele estivesse sóbrio, mas ele não está e nem, tampouco, desejava estar.
Poderia ser um dia como qualquer outro, trabalho exaustivo, vento, garoa, céu transmutando de cinza chumbo para negro impenetrável, mas não era, era um dia de lembranças e saudade, como também não poderia deixar de ser, um dia de tristeza.
Enquanto caminhava de maneira oscilante pela calçada, percebeu que as rajadas de ventos estavam cada vez mais fortes e as gosta de chuva cada vez mais pesadas, tentou apressar o passo, mas logo percebeu que não ganharia nada com isso.
Se perdeu em pensamentos, tentando decifrar a razão de tais sentimentos, aparentemente era um dia como outro qualquer de meio de semana, segundo sua supostamente confiável memória, nada de relevante ou fora do comum havia ocorrido, ao fim, tudo levava a crer que simplesmente havia acordado e sobrevivido ao longo do dia assim, sorumbático.
Sorumbático. Ele parou, disse a palavra a plenos pulmões, não havia ninguém na rua, então poderia falar o que e como bem entendesse, voltou a caminhar pensando em qual seria a tradução exata de tal palavras nas outras línguas que conhecia.
Foi quando uma sombra o abalroou, tirando novamente seu equilíbrio, por um instante achou que era a mais pura escuridão, mas quando conseguiu se recuperar, pode perceber que era, inexplicavelmente, uma idosa.
Seu primeiro reflexo foi de preocupação, poderia tê-la derrubado ou mesmo machucado nessa chuva intensa, colocou suas mãos em volta dela tão somente para perceber que ele fora o único a se desequilibrar.
A idosa falou algo que ele não conseguiu compreender, sua condição precária e maltrapilha o fizeram concluir, apressadamente, que era uma moradora de rua ou uma louca, se fez acredita que ela poderia estar pedindo dinheiro, comprar algo para se aquecer ou somente sobreviver a essa tempestade, remexeu os bolsos e catou algumas moedas.
Em nenhum momento ela parou de falar, mas nenhuma palavra ele compreendeu, essa situação o incomodou profundamente, buscou as mãos da idosa e despejou as moedas da forma mais célere que encontrou, as mãos enrugadas e finas se fecharam em volta das dele, ela sorriu com uma boca escancarada e de onde pendiam poucos e solitários dentes, como se fossem as pedras de Stonehenge.
Tão logo suas mãos se afastaram, por um instante conseguiu focar em seu rosto e poderia jurar ter visto tão somente um olho, mas a verdade é que juraria nada, não bêbado como estava e louco para chegar em casa e encerrar este dia.
Seguiu seu caminho, colocou as mãos no bolso para se proteger do frio, percebeu então que estava com a mão esquerda cerrada fortemente em volta de algum pequeno objeto, se perguntou se não seria uma das moedas que ficou para trás, parou e abriu a mão, estava certo, era uma moeda, mas não era nenhuma das pequenas moedas inglesas que se livrara.
Buscou uma fonte de luz perto de uma vitrine, era um dobrão ou alguma moeda grande, pesada e dourada, tentou investigar mais de perto, não conseguiu achar nenhuma informação relevante, em um dos lados, uma face humana, do outro, um emaranhado de formas e uma ou duas, não, três pernas, um triskele.
Um relâmpago rasgou a escuridão, seu brilho fugidio correu pela moeda e se transformou em um arrepio cruzando sua espinha até atingir o cérebro, neste mesmo momento o céu desabou em água sólida e líquida e o vento golpeava mais forte que um boxeador selvagem.
Correu, sem muito rumo ou direção, agora parecia uma questão de sobrevivência, sabia que não conseguiria chegar em casa e já havia caminhado demais para voltar, se tratava tão somente de encontrar um abrigo qualquer.
Olhando para frente avistou um letreiro semi-iluminado, de nada adiantaria se fosse um um pub, havia abandonado o último muito após muita insistência depois da última badalada, mas não tinha muitas opções, era lá ou a selvageria da tempestade.
Sem exitar irrompeu a porta com a intensidade do afogado que busca a superfície, sendo rechaçado pelo calor e o aroma de especiarias, ouvia o som animado de uma rabeca ao fundo, ele estava certo, realmente era um pub, mas não era em Londres e tampouco em seu tempo.
Ainda podia sentir seu corpo tremendo e a dificuldade em se mover com a roupa
encharcada mas não podia resistir a curiosidade de explorar tão surpreendente local, seus frequentadores e por que não, um pouco da cerveja que serviam ali. Todos pareciam felizes e celebrando alguma festividade que não poderia lhe passar na cabeça qual.
Os burburinhos, gargalhadas e canecas de madeira que se chocavam aguçavam-lhe a sede que agora o impelia até o longo balcão de madeira onde homens e mulheres em roupas de um tempo não vivido por ele atendiam seus clientes servindo o precioso líquido cor de âmbar e aroma irresistível.
Ele não conseguia compreender tão bem quanto gostaria o que muitos falavam a sua volta e talvez nem se importasse com isso realmente. Apenas mais uma, repetia para si mesmo enquanto a bloody tempestade despejava sua fúria e a iluminação do pub melhorava sensivelmente com o brilhos dos raios que estariam atravessando os céus do
lado de fora.
Tentou imaginar o gosto da Ale que pediu ao olhar para a garçonete de cabelos
cacheados e loiros, adornados por uma tiara de flores vermelhas e brancas ao mesmo tempo em que apontava para a caneca do homem calvo e de baixa estatura que estava ao seu lado bebendo como se não houvesse amanhã. Ela sorriu de volta enquanto se virava para um dos muitos barris que estavam atrás do balcão.
Tentou chamar a atenção daquele homem baixo que parecia ter braços tão grossos quanto o tronco de árvores para iniciar um pequena conversa. Estava bastante curioso para saber que lugar era aquele. Já se acostumara com a miríade de línguas diferentes que podia ouvir pelas ruas de Londres mas ali se sentia totalmente perdido, mesmo que estranhamente confortável.
Olhou para ele e disse três palavras que quase fizeram sentido. O homem baixo coçou a longa barba ruiva e franziu a testa. Apertou os olhos como se tentasse reconhecer quem era aquele bêbado de roupas estranhas e molhadas que o interrompia. Deu-lhe as costas enquanto voltava a virar sua caneca.
Finalmente a jovem trazia sua pint numa caneca de madeira escura com uma das mãos e empurrava em sua direção uma cuia com a outra. Entendeu como sendo o pedido formal de pagamento daquele estabelecimento e começou de forma atrapalhada a procurar por sua carteira. Ao mostrar algumas libras amassadas apenas conseguiu dela um olhar confuso.
Lembrou da distinta moeda que a idosa maltrapilha lhe havia dado. E com um sorriso, deixou que ela caísse dentro da cuia esperando que a jovem pudesse aceitá-la. Ela mexeu os lábios mas ele não pode compreendê-la. Uma pena, pensou. Talvez pudesse ficar um pouco mais antes de tentar ir para a casa mais uma vez.
Trazendo com cuidado sua Ale, se desviando de outros bêbados vestindo roupas de couro e peles de animais que cantavam em quase uníssono uma canção em uma língua que não conseguia distinguir, tentou se aproximar de uma das piras com chamas que ajudavam a aquecer o local. Por fim, encontrou um lugar para se sentar.
O sabor lhe surpreendia. Não imaginava poder provar algo tão diferente e, estando tão bêbado a essa altura da noite, era incrível que podia perceber a qualidade de qualquer bebida que lhe dessem. Sentia-se cada vez mais a vontade e não era apenas isso.
As muitas vozes e canções pareciam familiares agora. Mais um gole. Não sabia mais se teria ou não que trabalhar no dia seguinte. De qualquer maneira provavelmente não conseguiria ir. O que era isso? Aquelas palavras eram conhecidas. Eles estavam falando em inglês, pensou. Ou talvez fosse ele quem, de forma mágica, conseguia entender agora aquelas línguas!
E a música que muitos estavam a cantar falava sobre algo que todos ali pareciam saber. Sobre um bardo e suas canções, sobre o passar das horas ao fechar dos olhos. Sobre um mundo distante onde todos se encontrariam novamente. Sobre o amanhecer da noite que levariam todos para longe. Das suas casas, das suas famílias e amantes. Onde ninguém saberia seus nomes. Onde o medo se dissolveria.
Além da música, haviam várias conversas sobre um casamento que seria o evento da noite e se daria nas primeiras horas do novo dia. Pareceu a ele que muitos dos convidados da cerimônia estavam ali se preparando para o grande evento. Não sabia de onde eles eram, mas possuía uma boa ideia de como eles sabiam se divertir. E quis levantar-se para acompanhá-los em suas danças e canções.
Mas a tempestade lembrou a todos da sua presença, e que aquele santuário para bêbados e amantes das festas não os protegeria para sempre. Soprou mais forte e fez as janelas se abrirem com ímpeto, derrubando canecas e pratos no chão de madeira. Alguns pareciam continuar ignorando a opinião daquele estava do lado de fora e queria entrar.
Mas muitos se assustaram e pararam para dar atenção a voz dos trovões. E a porta também se abriu. Como se o estouro de uma manada esmagasse a madeira maciça da entrada principal e invadisse o interior, apagando as chamas que iluminavam o local e trazendo um frio cortante sobre cada um dos presentes.
E todos pararam o que estavam fazendo, como se aguardando em seguida por uma voz, um comando. Ela entrou. E cada vez que eu procurava uma posição melhor para observá-la entre os muitos ao meu redor, a idosa com suas vestes maltrapilhas caminhava a passos lentos
para o meio do pub.
Todos abriam caminho para ela, que parecia crescer em estatura a cada passo. Já não era corcunda. As roupas já não escondiam os seus músculos. O manto que escondia parcialmente sua face, já não escondia a ausência de um dos seus olhos.
Ela não mais. Ele. Sua voz em nada devia para os trovões que agora eram apenas
silêncio tal qual todos os demais ali dentro. Muitos tremiam, mulheres começaram a chorar. Homens também. Então ele falou sobre uma espada que havia sido arrancada do tronco de uma árvore no meio do salão principal do Rei. Que aquela era a noite que todos pretendiam ter esquecido. A Noite da Caçada.
À medida que falava a tormenta parecia responder aos seus brados, apesar de parecer estar fazendo o esforço de um simples sussurro, a cada palavra a tempestade que comandava a noite golpeava a porta e as janelas da pequena construção que agora parecia estar encravada na solidão do infinito.
Não era preciso olhar para fora para saber disso, bastava olhar nos olhos de todos ali dentro para perceber que o sentimento era o mesmo. Os homens e mulheres se postaram a sua volta com o respeito que se tem a um monarca ou a uma divindade, ninguém parecia notar a sua indiferença ou o seu espanto para a cena que se desenrolava a sua frente.
Mesmo as mulheres ali presentes mudaram a sua postura de pavor e se envolveram numa aura de coragem e admiração à medida que iam ouvindo a voz, que em sua cabeça ainda soavam como explosões, mas perfeitamente compreensíveis.
A caçada começaria em breve, muitos não voltariam. Três vezes se repetiria e três vezes se beberia a glória daqueles que sucumbiram e àqueles que retornaram. Sentado em seu canto ele observava aquilo tudo com perplexidade e admiração, num em toda a sua estadia em Londres ele havia presenciado cenas daquele porte, mas isso tudo o assustava.
As histórias do que aconteceria a seguir o cativaram e ele bebia a cada brado de euforia que tomava conta daquela horda. Gritavam e ele gritava junto, bebiam e ele bebia junto, nem se deu conta que não bastasse o quanto bebesse sua caneca nunca se esvaziava.
Aquela figura que outrora entra naquele pub como uma pequena e frágil figura de uma velha senhora agora se postava grande, talvez a maior de todas as figuras ali presentes. Seu olhar parecia ignorar a presença do outro visitante ao mesmo tempo em que o olhava com um olhar penetrante e frio.
Em meio aos gritos um único do velho gesto foi capaz de silenciar a própria tempestades enquanto olhava para o visitante e dizia:
– Meu filho… não vai correr?
O susto tomou conta do peito do visitante fazendo o ar queimar em seu peito produzindo uma dor lancinante a cada tomada de ar. Seus sentidos se recobraram automaticamente a medida que tentava em vão buscar segurança com as suas mas na parede atrás de si. Sua mão apalpava a esmo num segundo eterno a parede até que encontrou uma superfície cilíndrica que segurou como se sua vida dependesse disso.
E a tempestade retomou à sua fúria. O pequeno homem que havia visto no balcão pairava a sua frente flutuando no ar. Uma miríade de mesas tinham as janelas como destino. Homens e mulheres que antes confraternizavam formavam agora uma cena de batalha perfeitamente compostas pelo caos e furor imaginados em todos os contos de batalhas que já havia lido em sua vida.
O salão havia ficado livre de todos os moveis e de qualquer outra coisa que pudesse obstruir a passagem daquele vagalhão de pessoas ensandecidas.
Enquanto observava isso se perguntava como aquilo tudo havia acontecido em uma fração tão curta de tempo. Olhou ao centro do salão e lá estava a figura imponente do velho com um sorriso também olhando fixamente para ele.
Num lapso interminável de tempo o olhar do velho se voltou para a sua mão enquanto ele fazia o mesmo, foi aí que ele se deu conta de que segurava uma espada linda, brilhante e ornada com dois corvos em seu cabo. Um brilho explodiu junto com um raio e tudo a sua volta ganhou uma alucinação frenética.
O pequeno homem musculoso foi desviado pela caneca que ainda restara na sua outra mão, a mesa conseguiu dar cabo dos três que se seguiram. À medida que se desvencilhava das investidas alucinada dos outrora frequentadores do pub, a espada em sua mão sibilava e cantava ao encontro do ar ou às vezes estrondava como um relâmpago ao encontrar a resistência de algum material.
Conseguiu nalgum momento refugio atrás do balcão caindo desconcertadamente sobra a jovem que lhe servira o pint. Seu olhar era doce e sua boca cheirava a mel, uma caneca na cabeça foi o resultado do beijo imaginado desde o momento que entrara naquele pub.
Precisou voltar, ainda que tonto para o meio do caos do salão e apesar da escuridão quebrada apenas pelos raios da tempestade e de todos terem partido contra ele antes, ninguém percebeu a sua ausência enquanto estava caído atrás do balcão. Uma energia vibrante corria em suas veias, sentia-se vivo, as aflições de toda uma vida pareciam enterradas em algum lugar. Ele queria mais daquilo, isso parecia dar todo o sentido que havia procurado pra ela, mas algumas perguntas pairavam em sua mente, a espada, três vezes, o triskele, a caçada, a festa de casamento. Tudo resultava em apenas uma coisa, ele.
Cada um dos que ali estavam eram os caçadores e ele a caça, precisava sair dali se quisesse continuar vivo e não acabar como aqueles que já pairavam inertes no chão. Uns com sorte rolavam bêbados e atordoados enquanto outros eram levados por lindas e corpulentas mulheres para a escuridão da tempestade.
A porta era a única alternativa de sair dali já que todas as janelas estavam seladas pelas pesadas mesas de madeira bruta. As horas passaram o suficiente para raiar um novo dia, mas a tempestade e a noite continuavam travando o seu duelo lá fora. Ele não conseguia entender como ainda estava de pé nem como a cada horda de homens que caia a sua frente outra chegava.
Gritos e berros de fúria tentavam fazer frente ao caos que reinava lá fora e a mediada que as horas passavam ele ganhava terreno em direção à porta. Já estava a pouco mais de dois passos quando se deparou com a figura do velho ao seu lado e um sorriso paternal brotou dos seus lábios.
O que se seguiu foi uma fração menor do que a mais ínfima parte do tempo e num gesto calmo e lento o velho pôs a mão sobre o seu peito, um trovão estourou no meio da noite e seu corpo alçou voo porta afora.
À noite, a porta do pub se abriu e uma mistura de vento gelado e garoa cortante o acertam em cheio, pareciam navalhas e agulhas tentando perfurar a sua carne. A saída brusca, ele reclama enquanto perde o equilíbrio pelo confronto súbito da tempestade. Em sua cabeça repetia pra si mesmo que lá dentro era mais quente, mas algo o impulsionara para fora. O frio o fez lembrar do quanto havia bebido, ou pelo menos tentava imaginar isso.
Estava extremamente exausto e cansado como se tivesse trabalhado uma semana inteira mas a tempestade não parecia querer dar trégua, precisa ir pra casa, mesmo que não quisesse, algo o impulsionava para lá.
Caminhava cambaleante em meio a calçada lutando contra a fúria do vento enquanto bradava palavras sem sentido quando sem perceber tropeçou em uma pequena e frágil figura perdida em meio a escuridão. Tomado de sobressalto tentou envolve-la com os seus braços numa tentativa de impedir uma queda, mas serviu apenas para impedir que ele mesmo caísse.
Tentou dizer algo que soasse como desculpas em meio às palavras desconexas proferidas pela pequena figura idosa…