Curioso. Vocês aguardam o amanhã com uma inabalável certeza. Preocupam-se, como crianças, com seus doces ou travessuras, fantasias baratas e abóboras ocas com seus rostos estupidamente esculpidos. Tolas lanternas a iluminar uma folclórica noite sobre a qual poucos conseguem verdadeiramente explicar.
Pobres incautos que não percebem o perigo mortal oculto sob o véu vermelho deste céu, já que, de agora até o raiar de novembro, toda a loucura que a humanidade trancafia envergonhada em seus corações, forçará e murrará as grades incansavelmente, a fim de uma brecha por onde possa escapar. E, acredite: na NOITE DO DEMÔNIO ela sempre encontra uma saída.
Mas ouçam, vocês que não conseguem se conter. A vingança cairá com suas asas negras sobre suas cabeças culpadas. Pois, tal qual reza a lenda, assim que alguém morre, um corvo carrega a alma dessa pessoa para a terra dos mortos. Às vezes, contudo, algo ruim pode acontecer…uma tristeza tão horrível se prende a ela, e a alma simplesmente não é capaz de descansar. Algumas vezes, e só algumas vezes, o corvo pode trazê-la de volta para acertar as contas.
Eis aqui uma lembrança para ilustrar.
A década de noventa foi um daqueles períodos sombrios para a história do rock. Em maio de 94 os espíritos adolescentes sofriam com a precoce e brutal despedida de um gênio: Kurt Cobain. Entretanto, alguns meses antes, eu e meus poucos treze anos já havíamos provado o sabor amargo deixado pela perda de um ídolo. Foi num 30 de outubro, igualzinho a este, que Eric Draven, o virtuoso guitarrista da Hangman’s Joke (minha banda preferida naqueles dias), após testemunhar a dilaceração da carne e da alma de sua amada noiva, Shelly Webster, por mãos vivas, humanas no pior sentido, teve seu corpo cortado, alvejado e, finalmente, lançado através de uma janela para um voo fatal.
Não culpem os demônios ou espíritos vagantes…eles não estavam lá. O que houve naquele apartamento foi tão somente o ataque de uma matilha. Cães adestrados avançando em resposta ao assovio de seu mestre, um sádico e megalomaníaco criminoso, de nome Top Dollar, que, tal qual um cruel aspirante à divindade, decidiu se divertir e demonstrar força espalhando o fogo pela cidade, numa apocalíptica celebração à morte em nome da noite do diabo…e, sendo feita a sua vontade…ela queimou.
Datas, lendas, insanidade…nada trará sentido ao que se viu naquele lugar. Nada compensará as 30 horas agonizantes de Shelly no hospital antes de se desprender. Nada diminuirá a dor. Mas foi assim, quando o nada se tornou tudo, que aprendi duas coisas fundamentais: a primeira é que não se deve brincar com o que não se entende, uma vez que, bem além das doces travessuras, existe mais. Existem essas almas tão densas e reais quanto o ódio que as prendem ao mundo que um dia as torturou, e elas aguardam uma chance, as bicadas em sua sepultura, avisando que, enfim, é chegada a hora do despertar.
Um ano após estes fatos, um palhaço triste assombrou nossas ruas, saltando entre os prédios, seguido de perto pelo voo de um corvo, e por onde andou deixou um rastro indelével de morte e libertação. Alguns disseram se tratar de mais uma aberração embalada pelas vibrações deste dia, enquanto outros de que era, verdadeiramente, a personificação de um diabrete espalhando caos por puro prazer. Mas havia também aqueles que diziam enxergar além da pintura, e que, por trás daquelas ações, pairava a presença espectral do próprio Eric Draven, que, de algum modo, conseguira ultrapassar as barreiras do mundo dos mortos, ansiando pela oportunidade de revanche.
Loucura ou não, o fato é que, um a um, todos os nomes envolvidos no maldito crime encontraram seu destino nas mãos do gótico folião, e todos, na mais poética justiça, com a mesma crueldade que impuseram ao casal. Até o fim eles tremeram, acuados pela sombra que não podiam matar.
Um anjo negro, de passos leves, como gentis batidas em seus umbrais…anunciando uma última visita e nada mais…
E antes do sol surgir, o próprio Top Dollar pode desfrutar de uma valiosa lição: mesmo os deuses podem sangrar e, tombados dos seus tronos olímpicos, do mais alto de suas ambições, mergulham para os braços da morte como qualquer ser, e lá, aprisionados neste abraço, serão julgados, condenados, e finalmente punidos pela eternidade…no fogo que outrora os encantava. Aqueles que viram seu corpo empalado garantem que de algum modo o bem se fez, e que cada minuto da dor que infligiu aos jovens amantes lhe foi devolvido, congelados para sempre em seus olhos imóveis.
Do palhaço nada mais se ouviu.
Enfim, disse que havia aprendido duas coisas, e a segunda, hoje, me bate com um significado ainda maior, depois de ter visto e vivido minhas próprias tragédias. Descobri que a vingança é, de fato, uma das maiores forças da natureza humana, e a dor que a alimenta, se for realmente profunda, é capaz de operar sombrios milagres, destrancando portas virtualmente intransponíveis. Contudo, uma vez que a roda comece a girar, dificilmente irá parar…por ser insaciável. A esse espírito em agonia, somente um caminho leva à paz, e este é o refrigério do amor imortal.
Uma vez ouvi uma menina dizer que quando pessoas que amamos são roubadas de nós, a única forma de mantê-las vivas é nunca parando de amá-las. Prédios queimam, pessoas morrem, mas o amor verdadeiro é pra sempre.
Minha esposa e filhos já foram dormir, mas eu simplesmente não consigo. O 30 de outubro tem esse poder sobre mim. Incomoda. O mal que há em mim se atiça, a cabeça rodopia dançando com todos os problemas, e o som da chuva na janela, pra melhorar, cresce, parecendo tentar me enlouquecer. Pego o celular, e, sem abrir os olhos, coloco algo pra tocar aleatoriamente nos meus fones. Sua guitarra entra em menos de 5 segundos. O refrão fala diretamente comigo:
“Não pode chover pra sempre…”
Ao fim da canção o silêncio se faz em mim e lá fora…a tempestade momentaneamente termina. Agradeço a Erick numa breve oração e tento dormir outra vez, quando as batidas na janela recomeçam, mas agora leves e num ritmo incomum.
Eu a encaro, no escuro, sem saber o que pensar. Contudo, à luz do clarão de um distante relâmpago, a silhueta se mostra e eu tenho a certeza. Meu amigo veio me visitar.