Eu parei de ler HQs periódicas por volta dos anos 90, nesse momento as pessoas por trás das revistas estavam caminhando por caminhos tortuosos, motivados pela possibilidade de ganhar uma estátua na calçada da história por ter tido coragem de fazer algo polêmico com os heróis em voga na época, e que já estavam ali por mais de 50 anos. Enquanto isso, aqui as revistas chegavam à preços de capa que rivalizavam com livros.
Caminhando paralelamente, mas totalmente do outro lado da calçada, alguns artistas viram o mesmo caos que reinaria por muito tempo e com isso a possibilidade de conquistar esses dissidentes que, como eu, não se sentiam mais confortáveis em ler as revistas que tanto alimentaram a imaginação juvenil.
Graças à isso, pude conhecer algumas obras que me trouxeram de volta a mesma empolgação que sentia quando criança. Um desses títulos foi HellBoy de Mike Mignola, que foi seguido por outros ao longo dos anos, um exemplo deles é The League of Extraordinary Gentlemen do Alan Moore. E quando eu achava que não seria mais possível me surpreender, conheci quase que por acaso The Umbrella Academy de Gerard Way e Gabriel Bá.
As revistas não duraram uma hora em minhas mãos enquanto as devorava. Isso me fez buscar e esperar ansioso por cada número novo que saía. Todas essas revistas parecem respirar uma mesma atmosfera, fora da curva tradicional dos quadrinhos que conhecemos, algo beirando a non sense e ao mesmo tempo extremamente lúdico.
Quando tive a notícia de que seria feita uma living action sobre os meninos da Academia Umbrella, tive um certo receio de que viesse a seguir os mesmo caminhos distorcidos das últimas produções cinematográficas que vivem a mesma alucinação que as HQs da década de 90, onde os diretores e produtores querem reinventar o que já foi criado a mais de 70 anos.
The Umbrella Academy traz uma lição para todos esses engravatados de Hollywood que usam sua tabelas e pesquisas para justificar lucros absurdos, que dizem que não tem problema ser ruim ou não ser fiel se vendeu muito. Na Umbrella não existem estrelismo, nem idealismos pessoais.
Steve Blackman, Mike Richardson, Keith Goldberg e Gerard Way provam que não se precisa de mega orçamentos para se produzir um material de qualidade que prenderia qualquer um, fã ou não, por horas na cadeira de um cinema. Jeremy Slater ensina para todos que não é necessário matar ninguém, criar eventos absurdos que requerem efeitos mirabolantes para fazer a sua atenção se prender e se perguntar porque isso está simplesmente num canal de stream. Todos deixam bem claro que tudo que se precisa é de um olhar sério para a produção.
Quando vi o primeiro episódio, voltei a sentir aquela sensação gostosa de quando era criança e folheava as páginas das “revistinhas” vendo cada desenho pausadamente, e fazia isso por dias seguidos. Cheguei a ver o episódio “Funeral” três vezes seguidas, parecia aquela criança degustando cada traço dos desenhos daquela revistinha. O Episódio caminha entre cenas hilárias, com um humor pesado e muita ação enquanto os personagens vão se apresentando, cada um com o seu drama pessoal que você vai entendendo a medida em que os minutos passam. Mesmo com personagens tão antagônicos e excêntricos, a série não comete os erros de defender questões fora do escopo original em que foi construída, mantendo a fidelidade criativa.
Os atores se encaixam tão perfeitamente em seu personagens, que parecem vivê-los há muito tempo. Mérito claro das interpretações de seus protagonistas que nos faz ver um velho no corpo de uma criança e um homem que não conseguiu ser criança, uma jovem totalmente deslocada de seu mundo familiar e outra que precisa pagar o preço alto dos seus desejos pessoais, um psicopata pronto à explodir e uma lunático incontrolável.
Os diretores optaram por adotar ângulos, ritmos, luz e tudo mais que o universo cinematográfico possa oferecer de forma distinta para cada personagem, uma escolha que valoriza o conceito pensado para cada um deles por Gerard Way, que está na produção da série, e por Gabriel Bá. Talvez a presença de um dos criadores na produção seja um dos motivos, senão o maior, de a série se apresentar tão fiel aos quadrinhos.
The Umbrella Academy chega pela Netflix, sem muito estardalhaço, apesar de tanta expectativa, mas ela chega com toda pompa. A trilha sonora é absurdamente surpreendente por misturar gêneros distintos e antagônicos que te faz dançar entre um clássico instrumental e um rock pesado sem sentir que no meio do caminho valsou uma canção regional. A fotografia linda e a fluidez da direção te faz pensar estar diante de um filme de Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet, e mesmo assim você se sente lendo a revista em quadrinhos.
Infelizmente não consigo falar de The Umbrella Academy sem ser sentimental. Sentimental por ter me alimentado de novo com a esperança de ler boas revistas, sentimental por ver que uma adaptação pode ser feita de maneira respeitosa e empolgante com um resultado lindo, sentimental por me fazer sentir a mesma ansiedade de quando era criança ao receber uma revista ou quando me sentava na sala para ver mais um episódio do meu herói preferido.
Mesmo quem não conhece os personagens consegue se empolgar e se pergunta onde tem ou se é difícil conseguir um exemplar para ler. Mas não se esqueçam, The Umbrella Academy ainda têm segredos para serem revelados e você vai continuar se surpreendendo a cada episódio.