Algo tem atormentado o sono dos nerds seniors ao redor do mundo. Segundo seus mais ilustres representantes, uma onda de heresias tem atingido o legado imaculado das animações dos anos 80, e a primeira vítima a cair ante esta praga foram os Thundercats, nossos amados gatos do trovão, que, depois de um teaser de sua nova versão, a ser lançada em algum ponto de 2019, se viu novamente no centro das discussões. Uma mistura de traços toscos e infantis, somado àquele humorzinho típico do Cartoon Network, transformou Lion-O e seus companheiros numa caricatura absurdamente irreconhecível.
A seguir, o segundo golpe no orgulho nerd-conservador. She-ra, a princesa do poder, teve sua reformulação anunciada pela Netflix. Se nas saudosas manhãs da década de oitenta a irmãzinha do He-man erguia sua espada pela honra de Greyskull, parece que hoje ela lutará por causas mais contemporâneas e nobres. Segundo o primeiro release lançado, a ideia será fazer de Adora um símbolo do empoderamento feminino.Seu design também foi completamente repensado para um visual mais fofinho.
Agora vamos falar sério: a primeira coisa que precisamos ter em mente é que estamos falando sobre desenhos aqui, amigos, e não sobre uma nova versão de “sonhos de uma noite de verão”. Sem desrespeito. Sei o quanto essas obras foram importantes e marcaram uma fase maravilhosa das nossas vidas, mas, o fato é que este é um PRODUTO feito para um novo público novo . É Thundercats e She-ra, mano…e não A festa da salsicha! É um veículo usado para entreter a garotada por alguns minutos enquanto os adultos aproveitam (ou deveriam aproveitar) pra fazer algo saudável. É feito para vender brinquedos, roupas, mochilas e Danone. E SEEEEE for realmente bom, talvez ensinar algo que preste para os moleques. Agora seja franco…se você FOSSE o dono dessas marcas (aceita que dói menos) em que apostaria suas fichas hoje, no formato que tem dominado a nova geração ou numa versão mais adulta para agradar os antigos fãs? E, ainda apelando pra sua franqueza, onde você estava quando as ótimas séries Thundercats (2011) e He-man (2002) foram canceladas? Então não me venha com xurumelas.
“Ah, mas com esse apelo infantil na arte, não deveriam enfiar temas adultos disfarçados no meio, como bandeiras de movimentos sociais. Estão tentando doutrinar as nossas criancinhas.”
Mais uma vez, precisamos ter muita calma nessa hora. De fato, a menção ao empoderamento feminino levanta discussões. Contudo, talvez você precise rever alguns episódios da She-ra clássica antes de se sentir tão mordido pela declaração. A moça foi criada pra isso! Sua força, sua voz grossa, sua paciência salvando aquele arqueiro bigodudo princesinha…tudo foi pensado para se criar um símbolo de poder feminino muito antes da Beyoncé perguntar “Who rules the world?”. E não só isso, pois tanto ela quanto o irmão rapidamente acabaram se tornando ícones gays ao redor do mundo. Então, relaxa porque não há nada de novo aqui.
Essa polêmica acaba se misturando a um tema também muito atacado pelos fãs, que seria a diminuição na qualidade dos traços ao longo das décadas, com uma simplificação tida por muitos como preguiçosa, para se produzir mais, vender mais e gastar menos. Aqui sim, Goku entra em cena.
Veja, não sou dono da verdade… Nerdopolis é uma cidade livre onde todos nós podemos exercitar a nobre arte do meter o bedelho. Sendo assim, espero, inclusive, que vocês discordem de mim e tragam suas opiniões.
Ocorre que, de fato, da década de oitenta para cá, a cara da animação ocidental mudou muito. O Xou da Xuxa era tomado por desenhos que respeitavam regras de anatomia, tinham uma movimentação condizente com a realidade humana e piririm e pororom. Curioso notar que esses desenhos, apesar de terem seus “American heroes” típicos, eram praticamente todos animados por estúdios japoneses. Ou seja, enquanto no Japão a tradição dos animes e mangás seguia, com suas linhas simples e estilizadas, mas carregadas em emoção e personalidade, para os gringos os japs desenhavam segundo a cartilha por uma questão de aceitação cultural. Outra diferença estava na liberdade tanto no humor quanto na violencia. Enquanto por aqui víamos um He-man que nunca acertou um soco sequer no Esqueleto, lá o sangue rolava solto.
Ao longo dos anos, essa forma diferente de animação foi se infiltrando nos domínios do tio Sam. Lógico que sempre houve Speed Racers e Piratas do Espaço pra marcar presença, mas quando obras como Cavaleiros do Zodíaco e Dragon Ball explodiram em popularidade, a febre do anime pegou de vez, alterando inclusive o costume dos olhos ocidentais. Sim, porque tudo é costume, até mesmo o fato do grande herói não ser todo músculos como antes, mas magrelo, olhudo ou mesmo fofinho.
Personagens como o Goku criança, com seu estilo Chibi, acabaram reescrevendo nossa percepção visual. A linguagem do anime/manga conseguiu algo grande…afetou a cultura pop em todas as suas vertentes.
Tudo muito bonito, até os gringos sacarem e decidirem usar dessa transformação para criarem e ganharem com os seus próprios animes. Obviamente eles não entenderam nada, estabelecendo um novo conceito: a versão camelô da arte oriental, com traços e animação pobres, mal copiadas do original. Daí coisas horrendas como “três espiãs demais” começaram a surgir. E logo, tudo passou a ser fofo, caricato e, o pior, engraçadinho, engraçadinho.
Tem coisa mais anime do que ser divertido, mesmo no meio de um torneio de artes marciais valendo a salvação da terra? Mas o genérico não conseguiu até hoje, com raríssimas exceções (Titãs, Go!), captar a essência nipônica.
Convenhamos, entretanto, que só fazendo é que se aprende. Então, não se irritem…talvez toda essa loucura de bizarrices com marcas consagradas tenha um lado positivo. Vamos crer que, na verdade, seja a tentativa de se usar da popularidade desses heróis para promover um passo a frente no domínio dessa linguagem. A Netflix tem se mostrado competente em alguns tiros.
E se você fica chocado com a violência, as piadas maliciosas e a bandeira das minorias que vemos por aí, por favor…o que aconteceu com a sua memória? Lembra do Don Drácula? Lembra da tara do Oolong e do Mestre Kame? E o que falar sobre o abraço caloroso do Shun no Hyoga?
Caras…na boa. A tv é mesmo uma velha babá, e nunca vai substituir a supervisão de papais que tenham interesse no universo da garotada. Então, nos cabe agora aceitar e acompanhá-los, curtindo ou não o que os novos ventos nos trazem. Quem sabe, no meio de tanta maluquice, não consigamos reencontrar alguma coisa dos nossos heróis, para vivermos inéditas aventuras.
DEIXA ESTREAR, MANO!